O Lado Bom da Vida: Uma Abordagem Fenomenológica do Transtorno Bipolar em Pat

Autoras: Joyce Garbazza e Camila de Jesus Maciel 

Sinopse:  Depois de uma fase difícil de sua vida, Pat Solitano Jr. está disposto a seguir em frente e reconquistar sua ex-mulher. Através de amigos, ele conhece Tiffany, que lhe promete ajuda na tarefa da reconquista. Uma inesperada ligação começa a uni-los.

A psicopatologia fenomenológica surge como uma tentativa de se afastar do modelo de pensamento da psicopatologia clássica, que se baseia na formulação de um diagnóstico através da descrição de sinais e sintomas apresentados pelo paciente, a fim de classificá-los dentro de diagnósticos, para então realizar intervenções com o objetivo de reduzir ou cessar seus sintomas. Na psicopatologia fenomenológica, o ser humano é compreendido como um ser que possui várias dimensões e que está em constante interação consigo mesmo, com o outro e com o mundo. O ser-aí deve ser entendido em sua totalidade e singularidade, e não apenas em seu aspecto biológico. Quando se rompe com uma lógica biologicista, passa-se a considerar o vívido e o significado que cada um dá para sua própria experiência. “Os sintomas deixam de serem meros fatos físicos para se tornarem expressões das manifestações dos vividos relacionais e suas construções de significados”. Desta forma, o adoecimento humano é compreendido como um modo de ser-no-mundo, no qual o ser-aí encontra-se em uma condição de redução de suas possibilidades, percebendo a si mesmo e ao outro de maneira distorcida (MAGNABOSCO, 2020 ).

Através da compreensão de como uma pessoa vivencia a psicopatologia, o terapeuta ajuda a construir um modo de ressignificar o sofrimento, preocupando-se menos com o sintoma e mais com o sofrimento humano. Desta forma, o terapeuta com disposição fenomenológica não tem como objetivo explicar como funciona o psiquismo, mas acolhe o sofrimento do cliente, buscando compreender o sentido que o paciente dá ao sofrer. É levado em consideração o significado e o sentido que essa característica tem para cada indivíduo, levando em conta os aspectos próprios do indivíduo de acordo com a experiência vívida. Quando o ambiente restringe as possibilidades do ser-aí, torna-se adoecedor, principalmente quando limita a realização de tarefas ontológicas. E se, por um lado, as restrições são condição de adoecimento, as condições de aberturas podem proporcionar possibilidades de saúde. “Neste sentido, necessitamos de ambientes que nos propicie condições para resoluções e elaborações para lidarmos com as tarefas da vida” (MAGNABOSCO, 2020). Como terapeutas, o foco é sempre uma pessoa que busca auxílio, pois é a existência dela que precisa ser cuidada. É o seu sentido de vida que está comprometido, e o que podemos oferecer ir além de uma explicação, uma vez que às vezes nem é o mesmo possível explicar. Podemos oferecer interpretações, mas antes disso, devemos oferecer acolhimento e convidar o paciente a observar como está sendo o seu modo de existir (SODELLI & SODELLI-TEODORO, 2011), pois é a existência dela que precisa ser cuidada.

O filme “O Lado Bom da Vida” nos apresenta a história de Pat, que foi internado em uma clínica psiquiátrica, onde aconteceu por oito meses, após ter agredido o amante de sua esposa. Na clínica, ele descobriu que era uma pessoa com transtorno de humor bipolar, não-diagnosticado, mas mesmo diante do diagnóstico, ele se nega a fazer o tratamento com medicamentos. Ele acredita que tudo o que aconteceu em sua vida tem relação com o fato de ter vivido como uma pessoa negativa e está decidido a se voltar para o lado bom da vida e se tornar uma pessoa mais positiva.

Moreira e Bloc (2012) explicam que o transtorno de humor bipolar é uma “doença crônica e complexa”, caracterizada pela instabilidade do humor, que oscila entre fases depressivas e maníacas. Segundo eles, as variações de humor fazem parte da nossa vida cotidiana, mas é importante se atentar para as oscilações intensas que acontecem sem uma causa aparente, pois pode ser um indicativo de que algo está saindo da normalidade. De acordo com os autores, o diagnóstico do transtorno de humor bipolar pode ser difícil, já que uma pessoa pode permanecer na fase depressiva por muito tempo e seguir com um tratamento de depressão unipolar, só aceitando o diagnóstico bipolar quando apresenta características da mania.

Uma pessoa na fase depressiva pode vivenciar diversos sintomas, como ter dificuldades para cuidar de si mesma no que se refere, principalmente, à aparência e à higiene. Também pode apresentar dificuldade em manter o interesse por coisas que antes eram importantes, expressando com frequência sensação de cansaço e fadiga, comprometimento da concentração e memória, aumento da autoestima e autoconfiança, “além de possíveis ideias de culpa, pessimismo e falta de perspectiva de futuro ” (MOREIRA; BLOCO, 2012). Já na fase maníaca, Moreira e Bloc (2012) apontam como sendo mais comuns as características da melhoria que se manifestam tanto na fala quanto nas atitudes. Uma pessoa pode mostrar dificuldade em se concentrar em um único assunto e ficar pulando de uma conversa para outra, pode falar em demasia, sem nenhum cuidado ao abordar temas que possam causar desconforto ou constrangimento. “Em quadros graves, o paciente pode apresentar sintomas psicóticos como ideias delirantes, alucinações auditivas ou extrema atualização psicomotora” (Silva & Cordás, 2006 apud MOREIRA; BLOC, 2012).

É interessante perceber como o filme abordou e o desenvolvimento do transtorno bipolar. Após sair da clínica, Pat fica obcecado com a ideia de reconquistar sua ex-mulher e sente que é o responsável por ter perdido tudo o que era importante em sua vida, principalmente o casamento e o emprego. Com o intuito de restaurar seu relacionamento, ele decide cuidar de sua aparência e começa a correr todos os dias, devido à insistência sobre a necessidade de ter um físico melhor. A narrativa dá a entender que ele estava acima do peso e isso incomodava a esposa. Por isso, o personagem atribuiu a falta de cuidado com a imagem como algo que pode ter contribuído para a dissolução do casamento. Seguindo o objetivo de apresentar uma melhor versão de si para a esposa e mostrar que está tentando se cuidar e ao mesmo tempo se aproximar e entender coisas que são importantes para ela, ele passou a ler livros que faziam parte dos interesses dela. Apesar de não deixar claro como ele se comportou no casamento, o personagem apresenta um sentimento de culpa, como se não tivesse se esforçado o suficiente na relação. Em alguns momentos, o próprio personagem fala sobre como vem tentando mudar características em si que considerava negativas, enquanto busca viver uma vida mais positiva. É importante destacar que as motivações de Pat são externas, focadas em outra pessoa, e ele não consegue vivenciar possibilidades que não envolvam corrigir os erros do passado.

Explicitando uma característica da mania, que é marcada pela agitação e intensidade, Pat lê em um único dia um livro inteiro e, quando se depara com um final diferente de suas expectativas, reage demonstrando uma grande frustração. A característica de reagir de maneira agitada diante de situações em que se sente frustrado aparece em diversas cenas do filme, mostrando o quanto ele está instável, provavelmente pelo contexto familiar e também por se negar seguir com o tratamento medicamentoso. Moreira e Bloc (2012) apontam que o delírio é um sintoma menos frequente, mas pode ocorrer em pessoas com transtorno bipolar, e nenhum filme é apresentado em uma conversa entre Pat e seu psiquiatra. Pat deixa claro, para si e para o psiquiatra, que entende ter vivido um episódio de delírio, quando acreditou que a esposa e o professor de história, que depois veio a se revelar o amante da esposa, estavam conspirando contra ele e que não se devia ter prestado uma denúncia contra eles sem ter certeza. Porém, não podemos desconsiderar que provavelmente ele notou algo no comportamento deles que o incomodava e, por não saber como nomear, atribuiu a uma conspiração, que posteriormente se desenvolveu como um delírio persecutório.

Moreira e Bloc (2012) explicam que é necessário entender como os bipolares se relacionam com o tempo vívido. Os autores se baseiam nas contribuições de Minkowski, que explica: “em psicologia e psicopatologia a questão do tempo deve ser pensada em três diferentes aspectos: há o tempo da física e da memória, marcado nos estudos pela desorientação no tempo; o tempo e espaço que é representado pela duração mensurável; e aquele em que há somente o tempo, a duração vivenciada, o tempo-qualidade.” Para os autores, é importante entender como a pessoa com o transtorno bipolar vivência o tempo-qualidade para entender o sofrimento. No filme, podemos perceber a importância do tempo vívido na vida de Pat, Tiffany insiste em ser amiga dele, e conforme passa a conviver e conversar com ela, passa a entender que ela também sofre com sintomas e sentimentos que nem sempre consegue lidar, o que gera uma identificação e um vínculo. Quando aceita ajudar com a competição de dança e passa a ensaiar com ela, os episódios em que ficam agitados e agressivos vão se tornando menos frequentes. Mesmo que, em um primeiro momento, a motivação em ajudar Tiffany tenha vindo do desejo de se comunicar com a ex-mulher e reconquistá-la, aos poucos isso vai perdendo importância e deixando de ser o único objetivo de Pat.

Os autores Moreira e Bloc (2012) concluem que “o sofrimento bipolar é atravessado pela questão do tempo, seja por uma estagnação do tempo em que o passado é o que rege a vida, seja por um agora demasiado, eufórico e desfocado”. Pensando na experiência apresentada pelo protagonista do filme, podemos vislumbrar o que os autores apontam, Pat teve uma grande dificuldade em se desvincular do seu passado e não conseguiu fazer planos que não incluíssem reaver o que julgava ter perdido, ele focou todos os seus objetivos em reconquistar a esposa e retomar o casamento. O filme “O Lado Bom da Vida” mostra a necessidade de retomar o olhar para a pessoa humana, para além de seu diagnóstico psiquiátrico. O passado de Pat não poderia ser alterado; entretanto, conforme ele vai construindo com Tiffany novas possibilidades, vai questionando o que realmente deseja para o presente e o futuro, desprendendo-se aos poucos desta constante busca de retomada ao que viveu em seu passado. A partir da reflexão através da dança, entendida aqui como um momento terapêutico para Pat, ele consegue lidar de maneira mais saudável com seus próprios conflitos e começa a se lançar ao advir. Dessa forma, os sintomas do transtorno bipolar terão menos efeitos em sua vida, e Pat consegue assumir suas próprias escolhas, vivendo de forma mais autêntica.

Referências Bibliográficas

MAGNABOSCO, Maria Madalena. Apostila produzida para a disciplina. Reprodução proibida. 2020.

MOREIRA, Virgínia; BLOCO, Lucas. Fenomenologia do tempo vívido no transtorno bipolar. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, v. 4, pág. 443-450, dezembro de 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722012000400005&lng=en&nrm=iso. Acesso em 23 de janeiro de 2021.

O Lado Bom da Vida. Direção de David O. Russell. Intérpretes: Bradley Cooper, Jennifer Lawrence, Robert de Niro. EUA: Paris Filmes, 2012. (122 min.), filho., cor. Legendado.

SODELLI, Marcelo; SODELLI-TEODORO, Alessandra. Visitando os seminários de Zollikon: novos fundamentos para a psicoterapia fenomenológica. Revista Psicologia. São Paulo, v. 20, n. 02, 2011, pág. 245-272. Disponível em:                             http://revistas.pucsp.br/index.php/psicorevista/article/view/10343/7722 . Acesso em 23 de janeiro de 2021.

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